Minha querida Recife

Ana Carla Santiago
4 min readSep 22, 2020

Vasculhando fotos, textos e escritos antigos pela famigerada nuvem, me deparei com um texto que escrevi pra uma cadeira do curso de Jornalismo que não me recordo agora o nome. Foi uma tentativa de crônica que a professora não aprovou, tive que refazer. Mas o afeto que tenho por ele é imenso, maior do que qualquer limitação de nota e padrões de escrita. Decidi salvar ele por aqui, pra de vez em quando voltar, ler e voltar e mergulhar nas memórias boas da infância e da minha cidade…

MINHA QUERIDA RECIFE

“Minha querida Recife
Pequena, porém decente
Que coisa mais bonita
Olhar toda essa gente”

Esses versos de “Recife”, cantados por Erasto Vasconcelos, faz-me lembrar dos vários momentos da minha infância, quando eu voltava do colégio, logo após o almoço, e minha mãe dizia: “se arrume logo, que hoje a gente vai para a Cidade”. Que felicidade! O coração batia mais forte. Era uma alegria imensa quando a gente ia para a Cidade. Ci dade, em Pernambuco, é a forma a qual chamamos o centro do Recife. Desde que me entendo por gente que é “vou ali comprar umas coisas na Cidade”, “vamos para a Cidade?”, “motorista, esse ônibus vai para a Cidade?”, etc. Até as placas do transporte público mostram “Cidade” e não “Centro”.

Mas para ir para a Cidade não tinha como ir de carro, até porque estacionamento era o mais difícil. Ir de ônibus era minha alegria: passar por debaixo da catraca, sentar nas cadeiras mais altas, perto da janela e ir olhando a paisagem, com o vento batendo no rosto. Felicidade pura de criança (ou pirraia, como as pessoas chamam em Recife). Descíamos, eu e minha mãe, normalmente na Conde da Boa Vista. Adorava caminhar por ela, driblando as pessoas para tentar não esbarrar em ninguém — muitas vezes, sem sucesso, vendo os “camelôs”, os comerciantes informais, gritarem o preço de suas mercadorias e usarem a criatividade na hora de conquistar os fregueses, como o “40 Nego Bom é um real!” ou mesmo o “Olha a água mineral, geladinha, é um real!”. Mas a maior ansiedade era quando íamos para o Mercado de São José. A variedade de coisas à venda me deixava impressionada, sempre com vontade de nunca sair daquele lugar.

Alguns anos mais velha, eu pude “sentir” ainda mais a cidade. Sentir no sentido de desfrutar. No carnaval, por exemplo, sempre fiz questão de me cansar todos os quatros dias no máximo de blocos e shows que aguentasse só pelo desejo de desfrutar desse lugar maravilhoso chamado Recife. Sem falar nos grupos de maracatu e frevo, existentes também na cidade vizinha, Olinda, onde tive a oportunidade de fazer muito mais parte dessa cultura pernambucana.

Todos esses bons momentos, entretanto, são sempre lembrados de forma nostálgica, ameaçados a não se repetirem por causa do medo que as pessoas estão criando de andar ruas. E quando digo ruas, não é apenas o centro, como também os subúrbios da cidade. Um medo com fundamento, claro, porque, infelizmente, a criminalidade na capital aumentou. Mas também, um medo criado, sobretudo, pela difusão da ideia de morar em grandes e luxuosos prédios, com altos muros que segregam descaradamente a população, feitos por construtoras corruptas. A especulação imobiliária no Recife aumenta a cada dia que passa e isso afeta muito mais do que podemos imaginar a nossa cultura. Um exemplo claro disso é a preferência da maioria dos pernambucanos por shoppings centers ao invés de outros lugares de lazer, como o cinema de bairro — que ainda resiste,por mais que poucos, na cidade.

Muitas pessoas argumentam que tais prédios são ótimos para diminiuir a criminalidade de certos lugares, já que passaria a ter movimentação de pessoas que morassem lá, como é o caso do Cais José Estelita, no Cabanga, onde o Consórcio Novo Recife quer construir 13 torres em um lugar que deveria ser histórico. Tal argumento é falho, porque na prática percebemos que esses condomínios não integram a população, além de serem caríssimos e não acessíveis a todos. Ou seja, a criminalidade continua e as pessoas deixam de andar pelas ruas, muitas vezes optando a andar apenas em seus carros. Uma triste e angustiante situação que Recife está passando nos tempos de agora.

Não podemos deixar que a cultura de nossa cidade se dissolva entre o luxo e segregação de prédios construídos para os poucos ricos que existem. O que seria de Recife sem as pessoas que caminham por suas ruas, que visitam seu comércio, que festejam suas festas tradicionais, que vivem sua realidade? Certamente, nada. Recife está ameaçada a afundar cada vez mais por baixo do concreto, assim como aconteceu com o mangue afundado pela construção de um shopping no Pina. Não podemos permitir que o resto da cidade morra dessa mesma forma.

Meu maior sonho é estar com meus quarenta ou cinquenta anos e ver que a cultura recifense permanece firma e forte. Sem prédios e com pessoas sempre nas ruas, caminhando, dançando, festejando. Relembrar os bons momentos de juventude na cidade, cantando os outros versos da música de Erasto: “passeamos nas ruas / que nem antigamente / da Conde da Boa Vista ao Diario de Pernambuco / essa cidade, olha, é linda / essa cidade, quero sempre”.

Recife
2016

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Ana Carla Santiago
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Written by Ana Carla Santiago

Jornalista de formação, redatora e metida a escritora. Dois escritos publicados na antologia “Poetas do Brasil: a minha e outras poesias”.

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