O choro é livre — que bom que ainda temos isso, Letrux!

Ana Carla Santiago
5 min readMar 24, 2020

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“Eu estou aos prantos, quem não?”. Os versos ecoam na minha cabeça desde a primeira vez que pude ouvi-los, um dia depois do lançamento do segundo álbum da instrumentista/cantora/compositora/atriz — multiartista! — Letícia Novaes, ou Letrux, como a gente conhece. Me pego cantarolando exatamente essa frase aleatoriamente, seja nos afazeres domésticos, lendo um livro de tema duvidoso e tenso ou assistindo uma série do momento (que, geralmente, não consigo acompanhar em tempo hábil). Escutei o álbum um dia depois do seu lançamento, já que tenho uma mania intrínseca de precisar me concentrar 100% em novas músicas. Gosto de absorver tudo, até o talo. E o “Letrux aos prantos” também fala um pouco sobre isso.

Pensei muito no que colocar pra fora depois de escutar esse disco. Tem obra que mexe tanto com a gente, que precisamos colocar aquele bolo de emoções e resultados pra fora. É o caso de agora. A intenção aqui não é fazer uma crítica do álbum, já que seria muita presunção minha tentar fazê-la. Mas queria falar em específico das três músicas que mexeram comigo, de forma profunda e instantânea, nos 48 minutos de disco: Eu estou aos prantos, Abalos sísmicos e Cuidado, paixão.

Abalos sísmicos

Uma baladinha inocente e que, de início, esconde a força que a letra carrega. Me apaixonei de cara pelo ritmo, estilo década de 80 com uma pegada “Rita Leeana”, já que a artista é uma das grandes referências para a carreira de Letrux. “Me abalo, me abalo muito, nasci abalada, um tanto enrolada” são os primeiros versos da canção que me deixaram reflexiva. Coragem estar de peito aberto e se assumir abalada em uma geração tão fria e distante na qual vivemos, onde ser sensível e sentimental é, muitas vezes, relacionado à carência, exibicionismo ou loucuras em geral.

Não que não exista os três pontos que acabei de citar, mas sinto que (inclusive, essa que vos escreve) tentamos, cada vez mais, enterrar os resquícios de sensibilidade que ainda nos resta, seja por causa de traumas ou para criar um personagem bad guy, no feelings, que tem medo de se expor, mostrar vulnerabilidade, pedir ajuda. E Letrux usa o caminho contrário como ferramenta chave das suas composições. “Crente que sabe tudo, mas não sabe de nada e nem pede ajuda” é outro verso da mesma música que pode, talvez, reforçar essa questão.

A pedrada maior vem nos 2:18, quando a voz macia, porém firme, de Letrux ecoa nos ouvidos: “Acordei bem, mas o país não colabora”. Outro verso que, em momentos aleatórios, me pego cantando. Outro verso universal, que com certeza se encaixa na vida de todos os brasileiros nesses últimos tempos de incertezas, desastres e medos políticos. Como não se abalar com o cenário caótico da política brasileira? Os abalos sísmicos começam de dentro e continuam do lado de fora.

Eu estou aos prantos

“Não dá pra ter bebê, não dá pra ter um carro, não dá pra ser no débito. Não dá pra ser” são as primeiras frases da música que dá nome ao álbum. Podem não ser exatamente essas questões que nos angustiam, mas quem nunca se pegou na agonia da fatura do cartão que tá atrasada, como desenrolar o dinheiro pro aluguel ou adiar o sonho de uma viagem porque a grana do mês não deu? Motivos para estar aos prantos.

A canção me dá a sensação de acolhimento. Sinto como se Letrux me pegasse no colo, alisasse meus cabelos e dissesse: “olha só, tem motivo de sobra pra você estar aos prantos, mas quem não tem? Tamo nessa junto”. E acho que o objetivo da música é dizer isso: apesar das desgraças e tristezas, tá todo mundo aos prantos e todo mundo junto. Tá todo mundo na agonia de como guardar uma laminha do salário pra poupança, como pagar a escola do/a filho/a que aumentou a mensalidade, como sobreviver ao transporte público quente e lotado porque não tem dinheiro pra comprar um carro ou andar de uber.

Cuidado, paixão

Uma das canções românticas do disco, que fala sobre amor e desilusões. A melodia é suave, quase como um samba-canção, com a sensação de ter sido cantada no meio de uma praia. Tanto a melodia quanto o tom da voz de Letrux me lembrou muito a estética musical de Maysa Monjardim, artista da década de 50, famosa pelas canções de fossa e, posteriormente, a bossa nova. Como fã das duas e de uma boa desilusão amorosa, “Cuidado, paixão” me fisgou de primeira.

O verso “Me confundi quando cê disse ‘tchau’, entendi ‘te amo’, now it’s too late, baby”, com certeza, é um dos mais fortes da música, apesar da sutileza com que ela é executada. Creio que essa seja uma das marcas artísticas de Letrux: misturar o horror e o belo, o peso e a sutileza. E, geralmente, casa muito bem. Achar tudo tão looping, mas voltar com mais coragem pro show — essa é a lição que precisamos extrair de “Cuidado, paixão” e aplicar, com os devidos contextos, nas nossas trajetórias de (des)amor. Isso lá são horas pra cair nesse papo de que “não é você, o problema sou eu”?

O coro da banda de Letrux, no fim da canção, é a cereja do bolo para encerrar esse sambinha dor-de-cotovelo. A junção das vozes casou bem com um dos versos mais sensíveis da composição: “Não dei conta, vou chorar”. Afinal, prantos e choros é o que não falta no álbum inteiro e, para não se tornar monótona, a mensagem precisa ser passada de diferentes maneiras, tons e gingados. E Letrux, com um talento natural, tira isso de letra. E de sons.

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Ana Carla Santiago
Ana Carla Santiago

Written by Ana Carla Santiago

Jornalista de formação, redatora e metida a escritora. Dois escritos publicados na antologia “Poetas do Brasil: a minha e outras poesias”.

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