Traz o meu ilê, iyá!

Ana Carla Santiago
5 min readJun 10, 2020

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Nos últimos dias, os debates sobre racismo se tornaram constantes e acalorados nas redes sociais. Que bom que estamos discutindo e questionando sobre isso; que merda que ainda temos que discutir sobre isso em pleno ano de 2020. Sorrisos e lágrimas ao mesmo tempo, mas o orgulho predominando de ver cada vez mais gente interessada em se inteirar do assunto. Que bom.

Foram muitas mortes e violências sofridas pela população negra. Faz séculos e todo mundo sabe. Mas não basta saber: é preciso correr atrás, se informar, combater! “Não basta não ser racista, tem que ser antirracista”, disse Angela Davis. Deusa na terra. Procure saber.

Mas meu ponto nesse texto é o seguinte: como fica a cultura popular, oriunda do povo negro, nas periferias, e majoritamente composta por ele nos dias de hoje? Como estão (sobre)vivendo os artistas populares, em sua maioria negros, para fazer pulsar os ritmos criados pelos seus ancestrais, nesse tempo de pandemia? Dúvidas, dúvidas, dúvidas.

Maracatu não é brincadeira de carnaval, por mais que ganhe destaque e seja vendido como símbolo turístico pelas instituições apenas nessa época. Maracatu é tradição, resistência, ligação da população negra com a religião, o Candomblé. De acordo com o escritor Guerra Peixe, no livro “Maracatus do Recife” (1950), existe uma relação do Maracatu com a coroação de reis e rainhas do Congo, como eram chamados os líderes negros dos povos dos anos 1860 em diante. Havia uma competição entre os grupos — as nações — com festejos únicos durante essa coroação. Daí, a música foi introduzida, o que se tornou no que conhecemos hoje como cortejo — ou seja, o desfile. Cortejo vem de corte, e com ela participava todos os ícones da época: rei e rainha, príncipes e princesas, damas da corte, embaixadores, vassalos, as baianas (as mulheres que dançavam no cortejo), a dama-do-paço (que carrega a boneca calunga), o porta-estandarte (que carrega o símbolo material representativo de cada grupo). Vários deles ainda fazem parte do ritual tradicional que os maracatus nações fazem até hoje.

Comecei a frequentar maracatus com 18 anos, 2014, sem saber o que aquela manifestação representava para os brincantes e religiosos. Fui com o desejo de aprender a tocar música. Minha primeira batucada foi num grupo percussivo famoso só de mulheres em Olinda. Até os anos 2000, as mulheres eram proibidas de tocar instrumentos nos grupos, restando-lhes apenas os postos de baianas. Imagine só um grupo apenas de mulheres: uma verdadeira revolução. Hoje em dia, é muito comum. Ainda bem.

Os ensaios começavam, mais ou menos, em julho e seguiam até fevereiro para o cortejo. Apesar de famoso, nunca vi os ensaios cheios até o mês de dezembro. A maioria que participava desde o início eram as fundadoras e as mulheres negras, moradoras de periferia, que encontravam no batuque um momento de lazer, descontração e ligação com o religioso. No fim do ano e com a proximidade do carnaval, os ensaios lotavam com novas pessoas querendo tocar já com fevereiro batendo na porta. Brancos e classe média, em sua maioria.

O que quero dizer com isso? Que o Maracatu virou moda a gente já sabe. Tocar percussão não é crime. Mas é triste ver a maioria das pessoas ignorarem uma cultura tão poderosa e que é tão explorada justamente por falta de apoio, tanto do Estado, quanto dos próprios aprendizes, que muitas vezes só aparecem pra bater bombo perto do cortejo sem saber o que aquilo significa.

Me incluo nessa crítica: eu não me interessava pela história. Minha fissura era exclusiva dos instrumentos. Aprendi a importância de ler, saber e, acima de tudo, respeitar, participando de um Maracatu Nação. Em 2015, fiz parte do Maracatu Almirante do Forte, que fica no Bongi. Lá, coloquei alfaia feita de madeira de macaíba segurada por corda no lombo (iferente da alfaia de compensado, mais usada em grupo percussivo, a de macaíba é usada nos Maracatus-Nações e é muito mais pesada). Lá, também aprendi o que era mineiro/ganzá, gonguê, conga, djembê e timbau. Tive a oportunidade de tocar perto de Naná Vasconcelos e participar da sua última abertura no Carnaval do Recife, em 2016. Descobri que não se pode colocar o bombo virado pra baixo. A pele é sagrada. Ao parar de tocar, coloca-se ele de lado, com a madeira virada pro chão.

Lá também senti algumas ferroadas do machismo: alguns tambores maiores, sagrados, não podiam ser tocado por mulheres — “porque vocês menstruam”, foi a explicação que recebi ao questionar o impedimento. Também nos era proibido tocar no colar do Mestre. Num grupo inteiro, éramos apenas 3 ou 4 mulheres tocando alfaia entre mais de 10 homens. A maioria das mulheres dançavam ou tocavam agbê/xequerê e o mineiro — instrumentos tidos como “femininos”, enquanto a alfaia é relacionada ao homem por causa do seu peso. Nem tudo é flores.

Mas foi no Maracatu-Nação que me senti à vontade. Que senti que, além das tradições e da religião, a cultura acolhe crianças e adolescentes da periferia, dando oportunidades a eles de seguirem outros caminhos, traçarem novos destinos diferentes daqueles que o sistema os obriga a chegar. Eles aprendem música, muitas vezes recebem merenda, são incentivados a passarem a música para as suas próximas gerações.

A partir dessa (curta) vivência no Nação, consegui me identificar como negra. Tenho a pele mais clara e nunca sofri racismo explícito (implícito, várias vezes…), por isso não me assumia como tal. No fundo, acho que também tinha vergonha de dizer: sou negra. Anos e anos convivendo com processos que implantavam padrões brancos. O Maracatu Nação me fez abrir os olhos pra isso também. Em sua maioria negros, periféricos, eles são uma família. E família cuida, protege e oferece novos caminhos. A cultura tem poderes brilhantes e sábios nas nossas vidas.

Por isso, me questiono e me preocupo: como estão vivendo esses brincantes numa época de crise feito essa a qual estamos vivendo? Se antes, a atenção já era pouca para eles, o que está sendo feito agora para sustentar e não fazer morrer a cultura popular (não só os Maracatus, mas os Caboclinhos, Afoxés, Cavalo-Marinho…)? Como estão essas pessoas, homens e mulheres, em sua maioria negra, afastadas dos seus rituais de ligação ao sagrado? Como a cultura popular irá sobreviver a esses tempos de pandemia? Muitas perguntas, poucas respostas. Espero fazer outro texto trazendo todas elas. (se alguém por aí souber de algo, chega mais, vou ficar feliz em saber!)

Cortejo de Maracatu (não encontrei o ano, nem os créditos…)

Achei alguns links interessantes e deixo aqui para quem quer entender um pouco mais sobre Maracatus:

> O Maracatu-Nação como resistência cultural e religiosa afro-brasileira

> Maracatus em moda: de coisas de negros xangozeiros para símbolo de identidade pernambucana

> As nações de Maracatu e os grupos percussivos: as fronteiras identitárias

> Tipos de Maracatu

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Ana Carla Santiago
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Written by Ana Carla Santiago

Jornalista de formação, redatora e metida a escritora. Dois escritos publicados na antologia “Poetas do Brasil: a minha e outras poesias”.

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